quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

CAROLINA



CAROLINA, PROFESSORA, TINHA COMO HÁBITO ANOTAR TUDO QUE ACONTECIA NA ESCOLA E NA SALA DE AULA. Não era bem um diário, apenas apontamentos que fazia não sabia bem por qual motivo: para desabafar consigo mesma, ler depois quando se aposentar, publicar um livro... Ela ia anotando tudo, depois veria o que fazer com aquilo.
Estava retornando das férias e numa noite quente, ventilador ligado, acabara de ler As Pelejas de Ojuara. Foi dormir e sonhou com a cidade de São Saruê, onde: “As rochas eram de doce rapadura, o milho já saía do sabugo debulhado, e corriam riachos de leite e de mel, entre barreiras de carne assada e atoleiros de cuscuz.” (...)
O lugar querido da imaginação de poetas, cantadores, vaqueiros e todos os sertanejos que sonharam partir de sua realidade dura da terra de sol e seca para o Eldorado perdido no fim do mundo com chuva de ouro em pó, brilhantes, cristais, e demais maravilhas que a imaginação humana consiga visualizar. Vai se deparando com uma realidade tão rude como a do caboclo da caatinga e finalmente percebe a profundidade da situação ao seu redor.
Acordou e saiu depressa para o trabalho. “O primeiro dia de aula é o melhor do ano letivo!” Pensou.
Começa uma semana de planejamento. Essa é pautada pela necessidade de inclusão da criança e jovens com necessidades especiais. “uma proposta maravilhosa!
 Naquela mesa, no meio dos debates, surge a pergunta:
-Professor é uma profissão ou sacerdócio?
-Professor hoje é um castigo! Respondeu em tom de brincadeira. Ainda lembrando-se do sonho da noite passada e querendo descobrir o que diabo é “gota serena”.
Fim do planejamento e começo das aulas, Carolina passa a escrever tudo que chama a atenção na escola: a aula, a sala dos professores, o dia a dia dos alunos e alunas.
Os alunos querem aprender.
As meninas da quinta série estão bem nesse início de ano.
Percebe-se o avanço que elas trouxeram da quarta série. Agora é tudo novidade: vários professores, mudança de sala...
A quinta F está se comportando muito bem.
Toca o sinal e ela muda de sala. Faz a chamada, indica uma comanda de aula, passa a lição e começa a registrar:
Pegaram uma caixa de leite vazia que estava no cesto de lixo e chutaram para o outro, como se fosse uma bola de futebol.
Hoje na aula de Matemática o assunto foi equação do 1º grau. Alguns alunos resolveram com facilidade, outros não abriram o caderno.
Continua escrevendo...
Têm estudantes que não sabem o que estão fazendo na escola e a instituição escolar tão pouco sabe o que fazer com eles. Não gostam do estudo. O professor tem que “se virar” para que esses meninos fiquem motivados. Anotou tudo.
Pergunta sobre a escola, o aluno responde:
-A escola serve para ensinar a escrever, a ler e a contar. A escola é boa. A escola é o nosso futuro. Tem pessoas que vão à escola para estudar e têm outras que vão para brincar. Eu sou muito interessado na escola. Eu gosto muito da língua portuguesa.
Aquela resposta sobre língua Portuguesa deixou-a animada. Ela também gostava muito da sua língua materna e adorou quando o escritor Nei Leandro havia citado as misteriosas palavras regionais: reiado, gota serena, vôte, oxente, vige Maria, galado, pantanha, pantim, vuco-vuco, rugi-rugi, sibiti baliado, lambe oia, mangar, priziaca, sostô, ruma e outras lidas no livro da noite anterior.
Um Oasis Pedagógico
Cada sala de aula, cada aluno tem sua especificidade tem dias que uma turma muda completamente... Nem parece a loucura dos outros dias!
A seleção brasileira jogou ontem à noite e venceu por três à zero. Talvez por isso, hoje eles estão calmos e fazem a lição.
É assim mesmo! Quando o time de sua preferência vence uma partida de futebol ou conquista um campeonato, isso serve de motivação, conforto e deixa-os com mais vontade estudar.
Eles estudaram o teorema de Pitágoras. Perguntam, tiram dúvidas; quando termina, conversa com o colega ao lado, sem gritos. Conversa baixinho como se estivesse no cinema do “Shopping Center”. Uma aluna tira dúvida com o colega, pergunta ao professor se está certo. Ah, se todos os dias fossem assim! Registrou em seu caderno.
A Aluna pediu um poema
A professora Carolina gostava muito de literatura e poesias. Já tinha recitado poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Patativa do Assaré e Augusto dos Anjos. Uma aluna na última fila pediu-lhe um poema.
-Eu quero uma poesia sua professora.
Ela pensa muito, inspira-se e fez a poesia Adolescência:
“Ela me pediu uma poesia.
Tão bonita,
Jovem,
quatorze anos.
Quase menina,
quase mulher.
Flor do campo florindo
perfume de jardim.
Brilho estudantil
pediu-me um poema.
Meu coração mole não pôde negar!”
Tem dias que a sala “Vira”
 Virar, nesse caso, é como o que ocorria na Febem, ocorre em presídios, onde se perde totalmente o controle. Isso acontece também na sala de aula, quando se perde o controle e a situação fica propícia ao caos. Onde todos os riscos existem e o que passa na cabeça do professor nesse momento é sair da sala e pedir socorro para alguém de fora: um inspetor, coordenador ou direção.
“Um oficial não larga a tropa”. -pensa.
Os alunos ficam em pé, conversam, gritam, não querem saber de nada! Ficam todos falando ao mesmo tempo. Jogam papel uns nos outros, gritam, riem muito alto, incomodam.
Nesse dia, na sala dos professores, a única coisa que pode dizer é que dar aula é um castigo.
Mais uma semana que eles choraram
A professora saiu de casa para dar duas aulas, deixou a sala chorando e não voltou mais no resto da semana, gastou parte do salário em medicamentos.
“O professor trabalha numa situação adversa ensinando para aqueles que não querem aprender”
Voltou a pensar em São Saruê num dia em que todos entrassem na sala com vontade de estudar. Como gostaria de uma escola onde houvesse respeito entre todo mundo, boa educação, tecnologia a disposição de todos os alunos e alunas, professoras, educadores e demais funcionários, uma escola democrática e que formasse todos e todas para a vida.
Mas aqui, e é assim em outros lugares também, em algumas salas de aula existe um grupo numeroso, às vezes metade da classe, que está ali sem o menor entusiasmo a respeito do conteúdo transmitido.
Vai à escola por vários motivos:
Encontrar os amigos e amigas ou namorados e namoradas na segurança dos “entre - muros” escolares;
Receber o leite que será doado ao fim do mês e por isso não pode faltar;
Ter direito à alimentação diária;
Por obrigação dos pais que saem para trabalhar e não querem deixá-los na insegurança das ruas, becos e vielas;
E outros motivos particulares. Fora do interesse em adquirir conhecimentos científicos básicos ou ler, escrever e calcular;
Esses grupos, mesmo quando menores, conseguem fazer barulho, intimidar e impor a desordem no ambiente que freqüentam. Desabafa.
 Anota os detalhes pensando no dia em que esses seus textos cheguem a outras pessoas e denunciem o sofrimento, daquele dia, em sua situação de mestre.
Carolina sabe que o debate é mais profundo: que fatores extraclasses influenciam o comportamento dos alunos. Situação sócio-econômica, conjuntura nacional e mundial, crescimento econômico ou perspectiva de crise, até mesmo o papel da escola: se uma escola é conformista e visa manter a estrutura ou se exerce uma formação crítica libertadora, tudo isso influencia a aprendizagem e na motivação dos alunos, existem tantas outras questões que poderia estar escrevendo sobre a educação. Mas naquele momento ela queria mesmo era desabafar.
No fim de semana foi à escola para conhecer melhor os alunos, a família, o bairro, a rua, as vielas e os becos. Ela viu crianças e adolescentes estudiosos que não estavam fazendo lição de casa. Foi à escola e encontrou outros alunos jogando futebol na quadra. Nesse fim de semana teve jogo na escola: aí pode ver a situação de alguns estudantes, nem sempre os piores da sala, muitos, bons alunos, jogando bola sem o menor cuidado com a segurança. São acostumados a jogar pelada na rua, descalços, vários deles não têm dinheiro para comprar tênis, ficam o dia inteiro correndo e não se alimentam.
Eles carregam energia, disposição e sonhos.
Voltando para casa, perguntou-se... De quem será mesmo o castigo

P.S. Crônica publicada no livro "Oiteiro" em 2012.

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